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“Há resistência do mundo adulto em compartilhar o exercício de poder”, afirma professora Isis Longo”

 

De olho no Plano
19 de julho de 2011

 

 

Segundo Isis Longo***, doutora em Educação pela FEUSP, há no Brasil ainda um conservadorismo em lidar com crianças e adolescentes enquanto sujeitos de direitos aptos a participar dos processos de construção política. “[...] ainda nos deparamos com a resistência conservadora em aceitar a “res pública” como algo de todos”, explica.


Para a pesquisadora, no caso de crianças e adolescentes ainda há um agravante que é o fato de esse segmento social por séculos ter sido considerado como “uma “miniatura” dos adultos”, o que significou menos voz e vez nos espaços dominados pelos adultos.


Militante em defesa dos direitos das crianças ela fala ao De olho no Plano como foram realizadas as conferências lúdicas e as Conferências dos Fóruns DCAs (Fórum de Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes) ao longo dos últimos dez anos.


A última Conferência Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CNDCA) foi realizada em 2009 e, conforme programação do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) este ano serão realizadas as conferências municipais, que ocorrerão no 2º semestre e, as Conferências Estaduais e a Conferência Nacional serão realizadas em 2012.


Leia abaixo a entrevista exclusiva na íntegra:


De olho no Plano: O que é uma conferência lúdica? Quando elas surgiram?

Isis Longo:
Conferências “Lúdicas” são espaços de participação democrática, formados por crianças e adolescentes representantes de suas associações (escolas, entidades, outros) como o objetivo de avaliar e conferir como as políticas públicas para o segmento infanto-juvenil estão sendo executadas.  
A dinâmica de uma Conferência Lúdica respeita a diversidade étnica, social, de origem, gênero e a fase peculiar de desenvolvimento, portanto, a linguagem e a forma de discutir a política estão diretamente relacionadas aos protagonistas do evento, ou seja, fazer a Conferência com as crianças e adolescentes.


A 1ª Conferência Lúdica surgiu em São Paulo, o CMDCA/SP [Conselho Municipal], em 1999, em consonância às demandas do FMDCA/SP [Fórum Municipal], para ampliação da participação infanto-juvenil nas discussões, avaliações e proposições de políticas públicas. A 1ª Conferência Lúdica foi realizada no Centro Cultural Vergueiro.


De olho no Plano: As conferências lúdicas partem de que marco legal?


Isis Longo: O marco legal é o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente. Não há essa nomenclatura “conferências lúdicas” no ECA, mas há a compreensão ampla do direito à participação na vida política e da Educação para o exercício da cidadania, conforme artigos 15; 16; 58 e 59.


De olho no Plano: No Fórum DCA você teve a oportunidade de estar à frente de três conferências lúdicas (1999, 2001, 2003). Gostaria que falasse um pouco do processo de construção dessas conferências?

 

Isis Longo: Para esclarecer: não é necessariamente uma pessoa que representa o FMDCA/SP, estar “à frente” não significa o exercício centralizador de poder, e sim, a responsabilidade de encaminhar institucionalmente as deliberações das plenárias do Fórum. A dinâmica da Comissão Executiva do FMDCA/SP implica reuniões periódicas para decisões do colegiado sobre as ações do Fórum, entre elas a participação do fórum nos eventos e atividades referentes aos direitos infanto-juvenis.

 

No caso das Conferências DCAs, lúdicas ou convencionais, o FMDCA/SP está presente, mediante a participação dos seus membros nas Comissões Organizadoras das conferências. Já no caso específico das Conferências Lúdicas, a 1ª realizada em 1999, teve a participação centralizada, como uma única conferência para a cidade toda. A partir de 2001, assim como as Conferências convencionais DCAs, optou-se por organizar Conferências Lúdicas regionais para, posteriormente, realizar-se a Conferência Lúdica Municipal.

 

Esse processo foi realizado também no ano de 2003, como forma de ampliar o número de crianças e adolescentes participantes, bem como, garantir, no plano local, as discussões específicas das demandas e necessidades da região para posteriormente participar de formal global na Conferência Municipal.

 

A minha participação como militante do FMDCA/SP foi  na região Leste 1, por ser professora nesta região na época das Conferências.

 

De olho no Plano: Qual a diferença entre as conferências lúdicas e as conferências dos direitos das crianças e adolescentes?

 

Isis Longo: Conforme explicação acima, a disputa política para a participação ativa de crianças e adolescentes como protagonistas de suas histórias, resultou na realização da Conferência Lúdica dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, como uma conferência específica para o segmento infanto-juvenil, portanto, as discussões das políticas públicas deveriam ser realizadas com as crianças e adolescentes, mediante respeito às suas condições subjetivas de pessoa em desenvolvimento. Desta feita, a metodologia, a produção dos trabalhos, as apresentações, sínteses e votações, estariam de acordo com o universo lúdico dos delegados crianças e adolescentes.  Quanto o termo Conferência “convencional” dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes, estas compreendem a participação dos delegados adultos, representantes do governo e da sociedade civil, para discussão das políticas públicas do segmento infanto-juvenil.

 

A diferença entre estas Conferências DCAs antes “exclusivas” dos adultos, a partir de 1999, houve uma “provocação” para a mudança de comportamento dos adultos, que tiveram que aprender com as crianças e adolescentes que a Conferência DCA tem que ter a participação dos delegados adolescentes. Em 2001, houve uma “cota” de participação de adolescentes nas Conferências Municipal e Estadual, pois falar de protagonismo infanto-juvenil é diferente de “compartilhar” protagonismo no exercício do poder. Esse aprendizado ocorreu e ocorre ainda nas conferências DCAs.

 

De olho no Plano: Nas conferências de direitos das crianças e adolescentes os delegados de cada estado que participam são adultos que atuam na esfera dos direitos infanto-juvenis. Gostaria que você falasse um pouco como, de fato, é a participação da criança e do adolescente nos debates dessas conferências?


Isis Longo: Complementando, acredito que as Conferências DCAs são espaços para o aprendizado político de adultos, jovens, adolescentes e crianças. No entanto, além de espaço de aprendizagem política, as conferências são espaços de disputa de projetos políticos, há ainda a mentalidade e prática conservadora da sociedade brasileira de cerceamento de participação popular nos espaços públicos, o que levará tempo para ser transformado. No caso da participação dos adolescentes nas conferências DCAs, ainda há resistência do mundo adulto em compartilhar o exercício de poder, mas, nesse processo dialético de avanços e recuos dos movimentos sociais, a participação do protagonismo infanto-juvenil está ocorrendo, mesmo que não haja ainda paridade no número de delegados adultos e adolescentes, os mesmos estão presente, isso contribui para enriquecer o debate democrático.


De olho no Plano: Você fala em “dificuldade histórica de lidar com os valores democráticos nas instituições públicas”. No que isso se refere ao processo de participação de crianças em seus ambientes cotidianos, como em escolas? Você acha que ainda há uma dificuldade de aceitar a criança como alguém capaz de discutir direitos e deveres? Por quê?


Isis Longo: O Brasil ainda é um país muito desigual, o fato de estarmos vivendo uma recente democracia, termos um processo de alternância de poder, eleições periódicas, esses instrumentos da democracia liberal, representativa, estão consensuados na sociedade. No entanto, quando pensamos a participação direta da população em espaços democráticos como os diversos conselhos sociais, fóruns, plebiscitos, ainda nos deparamos com  a resistência conservadora em aceitar a “res pública” como algo de todos.


No caso das crianças e adolescentes há o agravante desse segmento social por séculos ser considerado uma “miniatura” dos adultos, o que significa que ter voz e vez nos espaços “dominados” pelos adultos levará tempo. O fato de termos o Estatuto da Criança e do Adolescente vigorando há 21 anos é uma garantia jurídica de que ser criança e adolescente é um direito do segmento etário de 0 a 18 anos, com especificidades que os adultos devem reconhecer e proteger.


Essa “novidade” legal não foi ainda compreendida pela sociedade brasileira, e pelas instituições sociais que convivem com crianças e adolescente, portanto as escolas têm o “discurso” da formação do indivíduo para o exercício da cidadania, mas a prática cotidiana é a formação do indivíduo para a domesticação e obediência.


As crianças e adolescentes que estão nas escolas na categoria aluno têm, no modelo secular de escola, os dispositivos de como “participar” da cultura institucional, ou seja, ser bom aluno, ser assíduo, ser cordato, ser disciplinado, esse “tipo ideal” de aluno sempre foi e continua sendo valorizado pela escola. Esses alunos domesticados têm a “participação” garantida, por exemplo, como membro do conselho de escola.  Portanto, acredito que a escola ainda não “aprendeu” a conviver com a diversidade, mesmo com a massificação das matrículas na Educação Básica. O direito a ter vez e voz, continua pautado na “meritocracia”, o discurso conservador, elitista, que antes de ter direitos, o sujeito teria de cumprir deveres...


De olho no Plano: Hoje como você avalia a inclusão de ações (e recursos) no âmbito dos planejamentos dos governos (municipal, estadual e Federal), que tenham como objetivo o atendimento específico de crianças e adolescentes como público alvo de políticas públicas, ações e projetos?


Isis Longo: Avalio que o Sistema de Garantia de Direitos do segmento infanto-juvenil ainda está em construção, mas sou otimista quanto à expansão e universalização dos direitos sociais mediante a organização e luta da classe trabalhadora.  Hoje há a evidência de um consenso federativo quanto ao compromisso com a educação pública de qualidade, resultado de lutas históricas. Essa lógica do direito subjetivo como uma obrigação do poder público é uma conquista dos movimentos sociais, que necessitam estar permanentemente em ação para pressionar o governo de plantão. Isso significa ainda muita luta para universalização da Educação Infantil, expansão da EJA [Educação de Jovens e Adultos], garantia do ensino para os adolescentes privados de liberdade, garantia da educação indígena, educação quilombola, etc.


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***Isis Longo, 37anos, historiadora, mestra e doutora em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), militante dos Direitos Humanos, membro da AETD – Associação Educativa “Tecer Direitos”.  Professora na educação básica e no ensino superior. Trabalha atualmente na EMEF Gonzaguinha (Heliópolis) e em instituições privadas de ensino superior.