:: Entrevista

 

Crianças devem ser consideradas como atores em tomadas de decisão, diz pesquisadora

 

01 de fevereiro de 2011


Em entrevista ao De Olho no Plano, a pesquisadora Nara Menezes fala sobre a importância de se desenvolverem metodologias capazes de promover a participação de crianças em processos de consulta e de monitoramento de políticas públicas.


Para Nara, é lamentável que esses processos não existam ainda com frequência. “As crianças e adolescentes falam mais genuinamente sobre o que pensam. Deveríamos contar muito mais com suas ideias, sonhos, opiniões, propostas. Os processos seriam mais eficazes, funcionariam melhor”, afirma.


De acordo com a pesquisadora, a experiência da participação, além de tornar os processos mais eficazes, contribui para o exercício da cidadania e o desenvolvimento psicossocial da criança, especialmente as que estão em situação de vulnerabilidade. E a diversidade de métodos – teatro, desenhos, massinha – garante a participação de todas elas, ainda que não possam se expressar com palavras.


Em São Paulo, crianças e adolescentes participam da construção do Plano de Educação da Cidade de São Paulo. Nos próximos meses, em que o projeto de lei deve tramitar na Câmara de Vereadores, novos encontros e oficinas serão realizados para que as crianças possam incidir sobre o plano.  


Nara Menezes é analista de monitoramento e avaliação da Fundação Abrinq – Save The Children e desenvolve pesquisas na área de participação de crianças. Acompanhe a entrevista na íntegra:


De Olho no Plano – Qual a importância de envolver as crianças em processos participativos de elaboração de políticas públicas e tomadas de decisão?


Nara Menezes – Nesses processos de avaliação de políticas, seja política pública, ou em processos de tomada de decisão no âmbito da sociedade civil, contar com os próprios beneficiários da ação é extremamente importante, primeiro porque custa menos e as ações se tornam muito mais eficazes. Principalmente no caso de crianças e adolescentes, porque você não está interpretando nada, mas fazendo um processo de consulta em que se recolhe a fala genuína desses atores.


Segundo, porque você cria visibilidade para sujeitos que normalmente são invisibilizados – seja porque não são considerados sujeitos de direito, cidadãos; seja porque normalmente não se tem uma cultura de participação a esse nível, ou ainda porque não há uma metodologia própria desenvolvida, já que ainda não existem muitas pesquisas sobre o tema.


Apesar de “usarem” as crianças em muitos campos, elas figuram como coadjuvantes, para “ornamentar” determinados processos. Ou se convidam as crianças para momentos lúdicos. Mas elas devem ser consideradas como atores, obviamente considerando seu nível de participação, de contribuição, pois elas têm muito a falar e a expressar. É preciso desenvolver essa escuta a partir de um adulto capacitado e formado para isso.


De Olho no Plano – Quais tipos de metodologia têm sido usados para possibilitar uma participação efetiva das crianças, que não seja apenas “figurativa”?


Nara – Ainda estamos muito longe de uma participação real, não só na América Latina, mas em todo o mundo. Acho até que a América Latina tem dado exemplos de muitas redes que têm se formado, principalmente no âmbito da participação juvenil. Mas esse é um problema global, existem poucos processos de escuta instaurados. Poucas organizações têm a participação das crianças em sua estrutura, até porque não é um processo fácil.


Já existem principalmente processos de consulta. Na área de educação, organizações como a Ação Educativa, a Campanha Latino-Americana e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação já instauraram processos de escuta inclusive com crianças pequenas, para definir indicadores de qualidade de educação infantil. Deve-se contar com o apoio de uma equipe multidisciplinar, normalmente com psicólogos. Com crianças pequenas, algumas metodologias envolvem desenhos, trabalhos de grupo com expressão através de bonequinhos, massa de modelar. Na verdade, o adulto é que precisa aprender mais a se comunicar com eles, porque eles se expressam também.


Com as crianças maiores, se trabalha com grupo focal, ou processo de consulta aberto, em fóruns, em que eles discutem a própria participação, ou se manifestam através de teatro e desenhos. Mas não se prescinde da presença de adultos, porque o processo participativo, ao contrário do que se pensa, não destitui o poder dos adultos. Na verdade, ele estabelece uma relação mais equilibrada, que dá mais poder às crianças e jovens para expressar suas ideias. Esses processos não podem prescindir de adultos capacitados e formados para poder contribuir e fazer com que a contribuição nasça.


De Olho no Plano – Quais são as etapas de um processo como esse? Depois da escuta, como são trabalhadas as informações para que sejam incluídas na política a ser elaborada?


Nara – Um processo participativo tem começo, meio, fim e começo (risos). Na verdade, não se pode apenas convocar as crianças, como se faz normalmente. Elas precisam estar informadas sobre o que vão conversar, tomar decisões. É preciso haver uma preparação com materiais em diversas linguagens, um tempo antes da tomada de decisão. Inclusive com o consentimento informado, que é, no caso de crianças pequenas, um método utilizado tanto para os responsáveis permitirem aquela participação, e estarem informados, como para as crianças maiores e adolescentes saberem o que estão fazendo e permitirem a gente inclusive gravar, tirar fotos, preservando sua identidade.


O “pós” é o que raramente acontece. Você consulta, colhe dados, tem todo um conteúdo que vem a partir de suas falas e então devolve para eles, antes inclusive de que esse material circule. Um processo de consulta não deve prescindir de um processo de devolução para as crianças. Até para eles verificarem se o conteúdo está ok, se foi aquilo mesmo que eles falaram, para permitirem a publicação. Por exemplo, processos de advocacy e de monitoramento de políticas públicas que evolvem crianças e adolescentes é muito difícil porque são processos longos, mas deve haver um monitoramento junto com eles, eles devem ser informados sobre o que está acontecendo. Esse é o grande aprendizado da participação, que não é um fim, é um meio. Se a participação é entendida como um meio, uma experiência para que você se capacite para exercer a cidadania, é normal e natural, e eficaz, que se devolvam esses resultados.


De Olho no Plano – E como esse material deve ser utilizado, depois?


Nara – O que eu vi de mais relevante em relação a esse tipo de processo são relatórios que são produzidos para as Assembleias da ONU, que discutem os direitos das crianças e se formulam recomendações aos países. Aqui no Brasil, eu participei de uma iniciativa da ANCED [Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente] de fazer um relatório alternativo sobre as metas que o governo faz e a sociedade civil se manifesta, com a participação de crianças e adolescentes. Foi uma excelente iniciativa, porque é como o olhar e a fala das crianças chegam às assembleias da ONU. No nível internacional é uma iniciativa extremamente importante.


No nível de política pública local, é falso dizer que há influência direta de jovens ou crianças na tomada de decisão. A influência da sociedade civil na formulação de políticas é pouca – constrói-se a pressão e o documento vai parar na mão de deputados, ou vereadores. Não é uma relação direta. Imagine para uma criança, isso chegar nas mãos de quem realmente toma as decisões. Raramente chega. Aí é que entra a parceria e uma relação de confiança, representatividade entre adultos e crianças, para que isso possa chegar.


Um outro processo importante é colocar crianças e adolescentes falando diretamente com autoridades locais, nacionais ou internacionais. Colocar as crianças para dialogar, e chegarem a um nível de colocação de propostas, de expor suas ideias e reivindicações. São raras as oportunidades, porque infelizmente são processos difíceis de acontecer, mas alguns processos acontecem. Não garante resultados, é claro, mas abre-se o diálogo, e cria essa capacidade de formulação tão necessária e que deve ser desenvolvida desde a infância.


De Olho no Plano – Como esse tipo de participação contribui para o desenvolvimento da cidadania nas crianças?


Nara – Como eu falei anteriormente, a participação é entendida como um meio, e contribui em muitos aspectos para o próprio desenvolvimento psicossocial da criança. A oportunidade de participação, de estar em grupo, decidindo, influencia completamente nos processos de autoestima, e isso temos comprovado em milhares de caso que a gente acompanha. São crianças que entram mudas em projetos sociais, que têm muita dificuldade de comunicação, e depois de algum tempo em grupo, tendo a oportunidade de formular, de aprender a fazer uma elaboração sobre seu pensamento, expressar suas ideias, se tornam extremamente capazes de opinar, de se expressar. Então é uma experiência que faz muito bem para a constituição da pessoa, não só nos aspectos de consciência, de funcionamento mesmo de sua expressão, mas também do processo político. De se tornar cada vez mais consciente de que é um sujeito.


Para crianças em situação de muita vulnerabilidade, que passaram por algum tipo de situação de emergência, catástrofe, ou sofreram violência, é um processo muito delicado, porque geralmente essas crianças têm dificuldade para confiar em adultos, e o processo de participação tem que ser focado também para que elas se expressem e possam colaborar. Inclusive para minimizar problemas relacionados a esse tipo de temática, para que eles possam, através da participação, retomar seu contato com a vida, com adultos, seus objetivos e aspirações. Eu diria que não tem contraindicação. Ajuda muito qualquer ser humano, e se acontece desde a infância, ou adolescência, ajuda a organização pessoal, a construção de uma consciência política, expressar opiniões, tornar as pessoas mais visíveis, desvendar capacidades e habilidades.


É lamentável que esses processos não existam ainda, infelizmente, mais frequentemente. Principalmente com crianças e adolescentes, que falam muito mais genuinamente sobre o que pensam. Deveríamos contar muito mais com suas ideias, sonhos, opiniões, propostas. Os processos seriam muito mais eficazes, funcionariam melhor.


De Olho no Plano – Você tem percebido um estímulo maior para que essa participação aconteça, nos últimos anos?


Nara – Está melhor do que há alguns anos, quando o tema não aparecia sequer na agenda política. O meu medo, como pesquisadora que acompanha muitos processos, é que a participação de jovens, principalmente, e de adolescentes, tem se tornado uma moda. Não confio nesses modismos. Minha desconfiança é porque a participação está vinculada a um processo de representatividade e formação de lideranças, mas ela não deve ser só isso. Senão, é uma participação irreal e vazia. Antes de tudo, é um processo muito coletivo, do respeito ao outro, discutir opiniões. Então esses processos de criação de pequenos líderes para falar em fóruns, levantando a mão e expressando opinião, são processos que não vão levar a nada.


Normalmente esses jovens reproduzem a opinião dos adultos, não é um processo de participação autoral, especialmente em grandes fóruns. Também desconfio desses processos que envolvem 300, ou 400 crianças de uma vez. É um processo delicado, que exige muita atenção. A não ser que haja muitos adultos envolvidos. Senão não há oportunidade de escutar as crianças. Tem que ser desenvolvida com uma metodologia em pequenos grupos, que até possa levar a uma plenária. Porque as crianças que não se expressam por palavras, são excluídas desse processo. É preciso ter uma diversidade de métodos, e não dá para fazer com centenas de crianças de uma vez.

 

 

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