:: Entrevista

 

 

Manuel Sarmento: “Estamos longe de garantir o direito à participação das crianças”

 

Fernanda Campagnucci, da redação do De Olho no Plano

 

04 de março de 2011

 


As experiências que promovem a participação de crianças nas decisões políticas em diferentes espaços de suas vidas – cidades, escola, movimentos sociais – são cada vez frequentes. No entanto, embora o tema tenha ganhado importância nos últimos anos, o direito à participação de crianças em processos de elaboração de políticas públicas está longe de ser garantido.


Em entrevista ao De Olho no Plano, Manuel Jacinto Sarmento, pesquisador que se dedica à sociologia da infância, traça um panorama da questão e critica a falsa participação. “As formas de imitação [do adulto] e de manipulação das crianças são inaceitáveis. A participação tem que ser sempre interpretada como uma ação influente, com impacto no coletivo”, afirma.


No processo de mobilização pela construção de um Plano de Educação da Cidade de São Paulo, estão previstos espaços em que as crianças poderão construir e apresentar suas propostas para o projeto de lei que tramitará na Câmara dos Vereadores.


Manuel Sarmento é diretor do Centro de Educação da Universidade do Minho, em Portugal.  Leia a seguir a entrevista na íntegra. Também é possível assistir à entrevista em vídeo, no canal do YouTube do De Olho (clique na imagem abaixo).

 

youtube

 


De Olho no Plano – Qual é a importância da participação das crianças em processos como a construção do plano de educação de São Paulo?


Manuel Jacinto Sarmento – Nos habituamos durante muito tempo a pensar as crianças como seres passivos, destinatários da ação dos adultos, sem vontade, sem opinião, sem voz. A partir de uma determinada altura, o reconhecimento de que as crianças são atores sociais, ou seja, sujeitos com capacidade de ação e interpretação do que fazem, levou ao reconhecimento da necessidade, e mais que a necessidade, do direito, da criança em participar da vida coletiva.


A Convenção sobre os direitos da criança, aprovada na Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989, consagra um conjunto de direitos relativos à participação. A partir deste documento jurídico desenvolveu-se uma ação intensa de acadêmicos, ONGs etc., que visa potenciar os direitos participativos e fazer com que as crianças sejam consideradas como parte ativa da vida coletiva, já que sua opinião e sua voz são fundamentais para construir modos de vida satisfatórios para todos. A participação é inerente ao próprio processo de maturação e desenvolvimento da criança.

No entanto, a avaliação que se faz da participação e dos direitos participativos no mundo inteiro mostra que estamos ainda muito longe de garantir esse direito. De fato, as crianças não são ouvidas nomeadamente no âmbito das instituições que ocupam, como a família e a escola, e muito menos a sua voz é usualmente ouvida no espaço público, por exemplo na organização das cidades, das políticas públicas. Mas tem havido um esforço no sentido de garantir essa participação, e as experiências que existem na materialização dessa participação mostra como ela é importante não apenas para as crianças, mas para a sociedade em seu conjunto.

 

"A participação é inerente ao próprio processo de maturação e desenvolvimento da criança".

 

 

 


De Olho – O tema tem ganhado mais relevância nos últimos anos?


Sarmento – Creio que há mudanças, ainda que relativamente débeis e tíbias, e podemos dizer mesmo que entre os direitos das crianças, de proteção, participação e provisão, os direitos de participação são os que estão, infelizmente, mais debilitados.


Em todo caso, as experiências mais interessantes são as que se realizam em contexto escolar, em que as escolas procuram construir seu espaço coletivo de educação e de cultura como um espaço de cidadania. As escolas que se afirmam no quadro de participação das crianças são as que revelam um elevado nível de desenvolvimento das crianças.


Há experiências participativas no âmbito de algumas intervenções municipais, em particular no quadro de municípios que se assumem como centrados na afirmação cidadã de todos os seus habitantes e, portanto, também das crianças. No entanto, esta questão da participação dificilmente se constitui hoje como um tema no âmbito de politicas públicas nacionais e é, mais do que outra coisa qualquer, uma causa que tem sido desenvolvida por algumas organizações internacionais, em particular a UNICEF, e algumas organizações não-governamentais que se centram nos direitos das crianças – recordo, por exemplo, da Save The Children. Há também a academia. Minha universidade integra uma rede europeia de universidades que têm mestrados sobre os direitos da criança e em que a questão da participação é uma questão fundamental.


Tem sido muito importante a experiência da América Latina, de movimentos que firmam não apenas a participação, mas até mais do que isso, o protagonismo das crianças. São movimentos que enfatizam a luta que as crianças conduzem pela emancipação social. Um dos exemplos é o movimento dos sem terra, mas há outros movimentos da América Latina, onde o protagonismo e a participação das crianças faz uma relação com o trabalho, por exemplo o movimento de crianças trabalhadoras em que a luta pela emancipação é assumida como uma forma de libertação social em seu conjunto e não apenas das crianças.


De Olho – Qual deve ser o modelo ideal para a participação? Algumas experiências não promovem a participação, de fato...


Sarmento – Existem formas manipulatórias das crianças que constituem uma falsa participação. Por vezes, se interpreta essa participação como modos de imitação pelas crianças daquilo que são as formas de ação política das democracias liberais, parlamentares. Criam-se parlamentos de crianças onde elas são investidas de funções idênticas às de deputados, propõem leis, fazem determinadas opções. Mas é tudo fingir, porque as leis não são verdadeiras e as opções se jogam fora.


Portanto, essas formas de imitação, de manipulação das crianças são efetivamente inaceitáveis. A participação tem que ser sempre interpretada como uma ação influente, com impacto no coletivo. Outra questão que se prende com essa é o fato de que as crianças têm uma vulnerabilidade estrutural e exigem da parte da sociedade, do seu conjunto, que elas sejam protegidas. Na verdade todos os seres humanos precisam ser protegidos, mas as crianças precisam ser protegidas e legalmente elas estão sempre sob a tutela dos adultos até atingirem a maioridade.

 

"Criam-se parlamentos de crianças onde elas são investidas de funções idênticas às de deputados. Mas é tudo fingir"

 

As crianças mais vulneráveis são as que necessitam de mais proteção, as crianças vítimas de abuso sexuais, violência, as crianças que não têm as suas condições de vida básicas garantidas, as crianças doentes, as crianças das minorias étnicas, os meninos de rua; todos esses são grupos que exigem uma intervenção protetora por parte do Estado.  E falar de participação sem proteção é, a meu ver, também inaceitável. Mas eu creio que o inverso também é verdadeiro. Não faz sentido falar de proteção sem participação, e portanto uma proteção participativa, aquela que envolve as crianças no seus contextos de existência, nas intuições, nas ONGS, nas tomadas de decisão de tal maneira que os dispositivos de proteção sejam eles próprios ativamente influenciados pelas crianças.


De Olho – Existem especificidades quando se fala em participação de crianças?


Sarmento – Sim. As crianças são o único grupo de seres humanos nas democracias liberais – que são um modelo político dominante em boa parte do mundo – que não têm direito a voto, nem direito de serem escolhidas como decisores políticos. Há nessa matéria até uma diferença entre Brasil e Portugal e uma parte de outros países da Europa. No Brasil o direito do voto é atribuído aos 16 anos, e em Portugal e na maior parte dos países da Europa o direito do voto é atribuído somente a partir dos 18 anos. De forma que participação política direta nos organismos e nos dispositivos das democracias liberais está vetada às crianças.


Isso não significa que a criança não seja um ser político e não tenha competências políticas. É interessante observar, por exemplo, como nessas revoltas recentes na Tunísia e no Egito há crianças na praça, ativamente envolvidas com os adultos nesse processo. No Egito, uma criança que inventava palavras de ordem particularmente criativas tornou-se uma espécie de símbolo daquela revolta que luta pela liberdade na praça central do Cairo, mas não tem direito de voto nem de ser eleito. Isso é uma especificidade.


No meu ponto de vista, também não é vantajoso que hoje se defenda a atribuição do direito de voto a todas as crianças. O que é importante é encontrar modos de mobilização da voz das crianças e de sua opinião em decisões políticas coletivas, por exemplo, em dinâmicas como o orçamento participativo, que têm impacto em algumas cidades do Brasil, a partir da experiência de Porto Alegre. Dinâmicas como essas são capazes de pôr as crianças a opinar, a dar a sua posição, a transmitir as suas opções. Isso se constitui de múltiplas maneiras, e não apenas das formas representativas em que se consolidaram as nossas democracias liberais.

 

De Olho – Quando se fala em participação de crianças, estão incluídas também crianças muito pequenas?

 

Sarmento – Sem dúvida. Alguns estudos realizados aqui na minha universidade, designadamente alguns deles feitos por estudantes brasileiras, mostram como as crianças desde bebês, na creche, tomam decisões e essas decisões influenciam o espaço coletivo. Isso é reconhecido a partir da pesquisa, porque não é absolutamente nada intuitivo que assim seja.

 

Os bebes são capazes de construir processos – e não temos que ter medo desse nome – políticos de decisão, fazem alianças, criam coletivos de resistência ou de conciliação, perante o adulto, o educador ou professor que esteja na sala na creche, fazem opções e lutam por essas opções. Isso tem impacto na vida coletiva dentro da creche. Portanto a participação é inerente à própria condição do ser humano, pois este é um ser que age na direção dos outros e que procura que essa ação seja uma ação entendida e interpretada pelos outros.

 

"Os bebês são capazes de construir processos políticos de decisão, fazer alianças "

 

 

 

 

Isso não quer dizer, em todo caso, que ascrianças devem ser os olhos do mundo, ou que a partir desse entendimento o adulto não tem nenhum papel. Não, o adulto tem papel fundamental e crianças e adultos devem ser capazes de se conjugar na concretização seus modos de vida e nas formas de organização e direção dos seus contextos de existência. Mas isto significa enfatizar a ideia de que as crianças também participam e de que essa participação é determinante no funcionamento da vida social.

 

De Olho – O adulto seria, então, um mediador desse processo. Há uma dificuldade de interpretar, ou mesmo de saber ouvir as crianças?

 

Sarmento – O adulto é mais que um mediador, ele desenvolve várias funções, finalidades e responsabilidades. De fato, é um mediador por vezes, outras vezes é um facilitador, e outras vezes é um interveniente e um coparticipante ativo no processo de decisão. Todas essas funções devem ser desenvolvidas.

 

Exige-se do adulto uma capacidade de escuta, de observação. Quando falamos de bebês isso é evidente, já que a participação é feita através de uma linguagem que não é discursivamente muito articulada, por vezes não é sequer uma linguagem verbal, mas corporal. Gestos, comportamentos, atitudes têm uma intencionalidade que é importante descobrir e articular com ela. E observação trabalhada, cuidada, preparada por professores e professoras e pais me parecem absolutamente essencial para não tornar inexistente, por estarem ocultos, os comportamentos da criança e a afirmação de sua vontade.

 

De Olho – Qual é o lugar dos adolescentes nesse processo?

 

Sarmento – Quando uso o conceito de crianças, é no sentido jurídico, que está assegurado na Convenção: o ser humano de 0 a 18 anos, que contempla também o adolescente. Não vejo diferença fundamental entre aquilo que disse relativamente às crianças menores aos adolescentes, sendo claro que os adolescentes, porque vão acumulando experiência, têm uma capacidade superior de produção de vontade e de expressão dessa vontade. Muitas vezes [essa expressão se dá] de forma dissonante, de ruptura com o adulto. Mas a ruptura é uma forma de participação que tem que ser suficientemente valorizada. A participação divergente não é menos participação por ser divergente. A participação é tudo isso: mobilização do esforço, da ação, da vontade dos indivíduos e das comunidades e dos grupos sociais para construir um espaço comum.

 

De Olho – Como acontece essa tendência do adulto de estimular a imitação das crianças, que o senhor citou há pouco?

 

Sarmento – Por exemplo, em algumas escolas infantis, há uma tradição que me parece completamente de imitação e de manipulação: fazer uma entrega de diplomas em que as crianças estão vestidas como se estivessem de fato no meio acadêmico, com um chapéu imitando os chapéus das universidades americanas, toda uma cerimônia que é uma forma de traduzir, num funcionamento institucional, a ideia de “homúnculo” que [o historiador] Philippe Ariès já denunciava relativamente à Idade Média: um ser humano completo, mas pequeno. Nós não precisamos de uma construção de participação de homúnculos, mas seres humanos completos que são também as crianças.

 

O que importante é perceber que as formas de participação das crianças não são idênticas às formas de participação dos adultos. No caso dos jovens, eu creio que as formas de participação em boa parte se realizam e se concretizam através de das tecnologias de informação e comunicação. Mensagens por celular, sites de conversação na internet, redes sociais como facebook etc. São processos de construção de uma vontade coletiva que têm impacto, porque essa vontade se afirma muitas vezes em movimentos coletivos, em ações que são organizadas com um sentido lúdico e político. Todos os comentadores das grandes manifestações atuais do Cairo falam da importância que teve a juventude na mobilização, através sobretudo da internet e da comunicação via celular.

 

De Olho – Como está hoje a produção acadêmica neste campo?

 

Sarmento – Está crescendo significativamente. Desde o princípio desse século, tem-se visto realizar em todo o mundo congressos em que as questões da participação são determinantes. Creio que estamos nesse momento a caminhar para uma fase de tentar concretizar a participação em projetos capazes de garantir não apenas o desejo, mas a afirmação completa da participação nos espaços de vida das crianças.

 

Há três áreas fundamentais onde os progressos acadêmicos têm sido mais entrosados, mais articulados, com intervenção social. Primeiro é a escola, e a questão da participação das crianças na escola era um tema absolutamente inexistente há cerca de 10 anos, o que em Portugal significava a inexistência de qualquer tese ou dissertação sobre participação infantil nesse espaço. Hoje a realidade já não é essa, e isso pode significar também algum esforço no sentido da transformação das próprias organizações escolares como organizações participativas.

 

O segundo são as cidades. Há hoje um maior esforço no sentido de identificar os modos de participação das crianças na cidade. E o terceiro são os movimentos sociais, a relação das crianças com os movimentos sociais e o lugar que os movimentos sociais dão e atribuem às crianças.

 

Há outros focos de participação onde existe investigação, mas que ainda talvez não tenham dado origem a um movimento claro e com uma reivindicação muito afirmativa. Um deles é no domínio judicial – a participação das crianças nos processos que lhes dizem respeito, apesar de já haver diplomas legais que consagram o direito, e mais que o direito, a exigência da audição das crianças nesses processos. E outro domínio é a família, e a construção de famílias verdadeiramente democráticas, participativas, onde se pratica uma cidadania íntima de respeito à voz das crianças. A família continua sendo pensada maioritariamente como o espaço privado, ocluso, fechado ao olhar coletivo e onde os seres mais frágeis, que são normalmente as crianças e também muitas vezes as mulheres, não têm voz, não participam verdadeiramente, e são até mesmo vítimas de violência.

 

 

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